sábado, 3 de agosto de 2024
Liturgia
Morrer
Partir é sempre morrer!
Empacotar ilusões
Imaginar necessidades irreais
Numa mala limitada
Na curta duração
De uma vida inteira.
Partir é sempre morrer!
Negociar tempos
Correr atrás do não vivido,
Usar o não usado
Jogar fora os arrependimentos
A Alma quer ir embora
E o corpo quer ficar
Hora de ver o que foi amado
Agradecer dádivas
Pedir perdões
Conceder
Abrir a mão
Soltar o balão
Partir.
Outra vez
Rinocerontes ferozes
Pisotearam meu jardim
Assustados e medrosos
Defenderam-se atacando
Cercas derrubadas
Bancos quebrados
Canteiros desolados
Árvores caídas
Outra vez eles vieram
Não sei de onde
Nem suas razões
O estrago está feito
As delicadas flores
Os saborosos frutos
Os lugares de encontro
Pisoteados
Colocarei muros de pedra?
Cercas elétricas?
Não quero bunker
Só um jardim.
Rinocerontes velozes
Adubaram meu jardim
Revolveram a terra
Fecundos espaços abertos.
Árvores cicatrizadas
Bancos de pedra
Canteiros refeitos
A vida não para!
Borboleta dourada
Pousou sobre meu peito,
inesperadamente,
despertando azuis e dourados
no coração que pulsava
sob suas delicadas asas.
A beleza paralisou as mãos
que queriam tocar
reter o efêmero e gratuito.
O coração desejou
que ela fosse eterna.
Suavemente voou...
deixando um vazio
que antes parecia não existir
as cores lançaram raízes...
nada será como antes!
Tempo e distância
Queria esquecer-me de ti,
queria esquecer que queria
e lembro sempre do que queria.
Essa lembrança doce,
que torna presente o doloroso ausente.
Queria esquecer, não tocar nada que lembrasse,
não pensar em poesia
não sonhar com a justiça
não contemplar estrelas em noite escura
não caminhar pelos campos
não sentir as cores
não ouvir música
não louvar, não comer,
não esbarrar com a verdade
nem roçar o desejo,
parar de respirar, se possível fosse...
O peixe esquece a água?
Essa água da Amizade viva
da qual vive...
lembrar faz sofrer
mas esquecer, deixar de ser...
quero lembrar-me sempre
até que o sempre se plenifique
para além dos limites.
Janelas e asas
Janela sobre o vale aberto de sol
aberta a alma quer saltar,
cair ou voar.
Insustentavelmente leve
levianamente pesada.
Asas cansadas? Enferrujadas?
Coração sedento,
desta água misteriosa, secreta...
da qual tenho saudades,
nada te substitui!
Saudade secreta aberta sobre a janela,
a água quer saltar aberta sobre o sol,
asas pesadas?
insustentavelmente enferrujadas?
cair levianamente...
leve voar...
saltar sedento sobre o coração aberto
insustentavelmente aberto
levianamente cansado...
do qual tenho saudades,
secretas, misteriosas,
pesadas, leves...
Vale cair? ou voar?
substitui a janela! nada!
Sol, água...
Asas abertas sobre o vale cansado, enferrujado
cair nestas águas misteriosas.
Desejos
Amo desejar-te
desejo amar-te,
Beleza sempre nova
e sempre antiga,
abismo atraente,
escuridão impenetrável.
Tu, que os céus e a terra
não podem conter,
ouso querer-te,
para além da miséria,
da tentação, do pecado...
Em tudo isso...
ouso desejar-te
com volúpia humana,
a única que tenho.
Ouso procurar-te
na matéria humana,
a única que tenho.
Ouso mergulhar num deserto,
inseguro, inóspito, solitário,
Ouso, criatura,
desejar o Criador,
o vazio que deseja a plenitude,
o servo que suspira
a amizade de seu Senhor.